2006-01-24

Papalagui

“Houve um tempo queridos irmãos, em que todos vivíamos, numa noite escura, pois não conhecíamos a luz irradiante do Evangelho; um tempo em que vagueávamos como crianças à procura da sua cabana sem a encontrar, em que o nosso coração desconhecia o Grande Amor e os nossos ouvidos estavam surdos à palavra de Deus.
Foi o Papalagui * que nos trouxe a luz, foi ele que nos veio libertar da noite negra em que vivíamos. Levou-nos até Deus e ensinou-nos a amá-lo. Veneramo-lo, pois, como sendo aquele que nos trouxe a luz, o porta-voz do Grande Espírito a que ele, Papalagui, chama Deus. Reconhecemo-lo e consideramo-lo nosso irmão, não lhe vedamos o acesso à nossa terra, pelo contrário partilhamos com ele de boa fé todos os frutos e tudo quanto tínhamos para comer, pois nos sentíamos como filhos de um mesmo pai. (…)
O missionário do Papalagui, ensinou-nos, em primeiro lugar, o que é Deus; desviou-nos dos nossos antigos deuses, dizendo-nos que se tratavam de ídolos, isentos da natureza divina do verdadeiro Deus. Deixámos por conseguinte, de adorar as estrelas da noite, a força do fogo e do vento, e a partir daí começamos a endereçar as nossas preces ao deus do Papalagui, a Deus, o Grande Senhor do céu.
A primeira mercê que Deus nos fez, foi tirar-nos, por intermédio do Papalagui, todos os canos de fogo e demais armas a fim de vivermos em paz uns com os outros, como bons cristãos, pois bem conheceis os mandamentos de Deus que nos manda amarmo-nos uns aos outros e não matar. É o mais importante dos seus mandamentos. Entregamos as nossas armas, e desde então nenhuma guerra voltou a dizimar as nossas ilhas e cada um respeita o próximo como um irmão. Não tardamos a perceber que Deus tinha razão em ditar tal mandamento, pois a paz reina hoje entre as aldeias que, outrora, se entregavam a terríveis, intermináveis e encarniçadas batalhas. (…)
Mas o Papalagui limita-se a empunhar luz, a estender o braço para alumiar os outros, pois que ele próprio, ou seja, o seu corpo continua nas trevas. Muito embora a sua boca proclame o nome de Deus e as suas mãos arvorem a luz, o seu coração vive longe de Deus.
Nada há para mim de mais penoso, nada me enche tanto o coração de tristeza, do que ser forçado a dizer-vos isto, filhos queridos das nossas muitas ilhas; o certo, porém, é que não podemos deixar-nos enganar a respeito do Papalagui, para que ele não nos arraste também para as suas trevas. É verdade que foi ele que nos trouxe a Palavra de Deus – sem, contudo, ter entendido os seus mandamentos e preceitos. A boca e a cabeça compreenderam, mas não assim o corpo. A luz não conseguiu penetrá-lo nem reflectir-se nele, de modo que, para qualquer lado para onde vá, possa iluminar tudo com a luz que lhe vem do coração, luz essa a que também se poderá chamar Amor.
Nem ele próprio, sequer, reconhece a contradição que está patente entre as suas palavras e os seus actos; mas nós sim, reconhecemo-la pela sua incapacidade em pronunciar a palavra de Deus no fundo do coração. Quando a diz, faz uma espécie de careta como se estivesse cansado e como se essa palavra não lhe dissesse respeito. Todos os Brancos se atribuem a si próprios o nome de filhos de Deus, crença essa atestada, em esteiras, pelos chefes de tribo da terra; mas embora todos eles tenham recebido o grande ensinamento e todos conheçam Deus, Deus continua a ser-lhes estranho. Nem mesmo aqueles que foram formados para falar de Deus em grandes e magníficas cabanas construídas em sua honra têm Deus em si; falam no ar, falam no meio de grande vazio. Esses mensageiros que falam de Deus não sabem discorrer sobre Deus, falam como as ondas que vêm quebrar-se de encontro às rochas: embora ressoem continuamente, ninguém já as ouve. (…)
O Papalagui só muito raramente pensa em Deus. Só quando é apanhado pela tempestade e essa tempestade está prestes a apagar a chama da sua vida, só então é que ele se lembra que há poderes que lhe são superiores e chefes de tribo de mais alta estirpe. (...)
O seu coração está repleto de ódio, de cobiça, de hostilidade, e mais parece um gancho enorme e pontiagudo, um gancho tão só destinado ao roubo, do que luz que vence as trevas, tudo aquecendo e iluminando.(…)
Que Deus não ajude a não nos deixarmos ofuscar pela sua luz a pontos de nos perdermos no caminho; antes ilumine todas as veredas, de modo a podermos caminhar banhados por essa maravilhosa luz, e assim nos amarmos uns aos outros, e assim fazermos muitas talofas** nos nossos corações.”
* o homem branco
** actos de amor


- O Papalagui, discurso de Tuiavii, Chefe de Tribo de Tiavéa, nos mares do Sul

1 comentário:

Volney Faustini disse...

Excelente texto! Sei que é pedir demais, mas vc poderia nos brindar com o(s) link(s) de fontes ...

Bispo Desmond Tutu que falava acerca do processo missionário-colonizador: "Vocês nos ensinaram a orar. Enquanto fechavamos os olhos, levaram as nossas riquezas ..."